restaurantes não são santuários…

[ultrapassar uma regra, quando inofensiva, sabe-me bem. O texto que se segue não é meu mas  merece estar no Otros Mundos]

Este texto é dedicado ao “Chef” Avilez, que estragou dois magníficos restaurantes, o Tavares e, principalmente, o Belcanto. E como esta praga não é nacional apenas, dedicado também ao Alain Ducasse, que assassinou o em tempos magnífico Louis XV, o restaurante (emblemático) do Hotel de Paris, em Monte Carlo. Felizmente, neste caso, pelo menos continua a magnífica garrafeira.

Restaurantes não são santuários…

Estou cansado da religião dos chefs: restaurantes não são santuários…

O melhor restaurante do mundo?

Ora, ora: é o Eleven Madison Park, em Nova York.

Parabéns, gente.

A sério.

Espero nunca vos visitar.

Entendam: não é nada de pessoal.

Acredito na vossa excelência.

Acredito, como dizem os críticos, que a vossa mistura de “cozinha francesa moderna” com “um toque nova-iorquino” é perfeitamente comparável às 72 virgens que existem no paraíso corânico.

Mas eu estou cansado da religião dos chefs.

Vocês sabem: a elevação da culinária a um reino metafísico, transcendental, celestial.

Todas as semanas, lá aparece mais um chef, com a sua igreja, apresentando o cardápio como se fossem as sagradas escrituras.

Os ingredientes não são ingredientes.

São “elementos”.

Uma refeição não é uma refeição.

É uma “experiência”.

E a comida, em rigor, não é comida.

É uma “composição”.

Já estive em vários desses santuários.

Quando a comida chegava, eu nunca sabia se deveria provar ou rezar.

Os meus receios sacrílegos eram acentuados pelo próprio garçom, que depositava o prato na mesa e, em voz baixa, confidenciava o milagre que eu tinha à minha frente:

– Pato defumado com pétalas de tomate e essências de jasmim.

Escutava tudo com reverência, dizia um “obrigado” que soava a “amém” e depois aproximava o garfo trêmulo, com mil receios, para não perturbar o frágil equilíbrio entre as “pétalas” e as “essências”.

Em raros casos, sua santidade, o chef, aparecia no final.

Para abençoar os comensais.

No dia em que beijei a mão de um deles, entendi que deveria apostatar.

E, quando não são santos, são artistas.

Um pedaço de carne não é um pedaço de carne.

É um “desafio”.

É o teto da Capela Sistina aguardando pelo seu Michelangelo.

Nem de propósito: espreitei o site do Eleven Madison Park.

Tenho uma novidade para dar ao leitor: a partir de 11 de abril, o Eleven vai fazer uma “retrospectiva” (juro, juro) com os 11 melhores pratos dos últimos 11 anos.

“Retrospectiva.”

Eis a evolução da história da arte ocidental: a pintura rupestre de Lascaux; as esculturas gregas de Fídias; os vitrais da catedral gótica de Chartres; os quadros barrocos de Caravaggio; a tortinha de quiche de ovo do chef Daniel Humm.

Gosto de comer.

Gosto de comida.

Essas duas frases são ridículas porque, afinal de contas, sou português.

E é precisamente por ser português que me tornei um ateu dos “elementos”, das “composições” e das “essências”.

A religião dos chefs, com seu charme diabólico, tem arrasado os restaurantes da minha cidade.

Um deles, que fica aqui no bairro, servia uns “filetes de polvo com arroz do mesmo” que chegou a ser o barômetro das minhas relações amorosas: sempre que estava com uma namorada e começava a pensar no polvo, isso significava que a paixão tinha chegado ao fim.

Duas semanas atrás, voltei ao espaço que reabriu depois das obras.

Estranhei: havia música ambiente e a iluminação reduzida imitava as casas de massagens da Tailândia (aviso: querida, se estiveres a ler esta crônica, juro que nunca estive na Tailândia).

Sentei-me.

Quando o polvo chegou, olhei para o prato e perguntei ao dono se ele não tinha esquecido alguma coisa.

“O quê?”, respondeu o insolente.

“O microscópio”, respondi eu.

Ele soltou uma gargalhada e explicou: “São coisas do chef, doutor.”

“Qual chef?”, insisti.

Ele, encolhendo os ombros, respondeu com vergonha: “O Agostinho”.

O cozinheiro virou chef e o meu polvo virou calamares.

Infelizmente, essa corrupção disseminou-se pela pátria amada.

Já escrevi sobre o crime na imprensa lusa.

Ninguém acompanhou o meu pranto.

É a música ambiente que substituiu o natural rumor das conversas.

É a iluminação de bordel que impede a distinção entre uma azeitona e uma barata.

É o hábito chique de nunca deixar as garrafas na mesa, o que significa que o garçom só se apercebe da nossa sede “in extremis” quando existem tremores alcoólicos e outros sinais de abstinência.

Meu Deus, onde vamos parar?

Não sei.

Mas sei que já tomei providências: no próximo outono, tenciono aprender a caçar.

Tudo serve: perdiz, lebre, javali.

Depois, com uma fogueira e um espeto, cozinho o bicho como um homem pré-histórico.

O pináculo da civilização é tortinha de quiche de ovo do chef Daniel Humm?

Então chegou a hora de regressar às cavernas de Lascaux…..

 

 

 

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Adaptado de Esquire, de Matthew Buchanan