a corrida da pedra

“O passado não está morto”, escreveu Faulkner em “Requiem por uma monja”; e acrescentou: “Nem sequer é passado.” Impossível dizer melhor: o passado nunca termina de passar, sempre está aqui, operando sobre o presente, formando parte dele, habitando-nos. Viver um presente sem passado é viver um presente mutilado. É dizer: viver uma vida mutilada. (Javier Cercas, “La dictadura del presente” in: A Gorda de Isabela Figueiredo).

Toca a correr.

há oito dias, em Évora, fiquei com uma pedra no ténis. Num repente, a meio da semana, Deus quis, sonhei e a inscrição na ½ maratona dos Descobrimentos aconteceu. Sem pensar. Porquê esperar mais tempo para tirar a pedra?  A memória e o gosto da corrida está cá há 44 anos, por muito dura e angulosa que seja, não há pedra que resista. Esta identidade com a corrida tem muito peso, muita força, há um passado, não quantificado, de muitos quilómetros, de muita cabeça.

“O passado não está morto”, escreveu Faulkner em “Requiem por uma monja”; e acrescentou: “Nem sequer é passado.” Impossível dizer melhor: o passado nunca termina de passar, sempre está aqui, operando sobre o presente, formando parte dele, habitando-nos. Viver um presente sem passado é viver um presente mutilado. É dizer: viver uma vida mutilada. (Javier Cercas, “La dictadura del presente”). Toca a correr. Este sempre foi o meu método, nada de planos, sistemas, séries, o que seja, tudo se resume a quilómetros nas pernas. Esta semana que passou não corri, a pedra não deixou. Uns dias antes, provavelmente pela conversa da Sandra sobre o Covão da Ametade, a minha cabeça, e não só, andou pelas vertentes  da Serra da Estrela. O vale Glaciar, onde nasce o Zêzere mexe com o Carlos e com o geólogo. O espaço e o tempo cruzam-se e o medo de falhar outra vez trouxe-me insónia.

Há 5 anos corri a 1ª meia dos Descobrimentos, foi agreste pelo verdadeiro dia de inverno. Na época, esta novidade, serviu para um treino de fim de semana. Hoje tudo foi diferente, até o percurso. Há primeira hora, ainda em casa, como acontece todos os dias, li a Leitura Diária que me sugeria Fé; provavelmente terá ajudado a dissipar o medo das vertentes da Estrela que me perseguiram. Houve várias partidas, a primeira foi na estação da Parede, quando entrei no comboio que me levou até Belém, tantas memórias, um filme em rotação acelerada.  Em Belém o incontornável Júlio lá estava, a fazer a sua 105ª meia maratona, com os amigos de Cascais, otro mundo. Falamos de corredores a sério. Num repente a conversa foi parar a Évora e a coisa ficou mais pesada. Fui mijar para esquecer e segui para a caixa de partida, queria estar só. Parti no fim, no fim de todos, quando passei pela meta já tinham passado mais que dois minutos. Muito pouco tempo depois a magia da corrida deu-se e o medo foi-se dissipando. Percebi rapidamente que a coisa estava bem, muito bem. Aos 7 km dei conta que estava passar a bandeirinha dos 6min/km. Pensamentos contraditórios invadiram-me. Por onde tinha andado até ali?  Se fiz corridas sozinho esta foi uma delas, queria mesmo estar sozinho. Passados dois ou três quilómetros estava na 24 de Julho, passei pela minha Faculdade, depois da Politécnica arder meteram-nos ali em condições indiscritíveis. Recordei a casa onde “vivi” cinco anos, de tudo, como na vida. Foi incontornável a cabeça foi até lá. Daqui a duas semanas outras memórias virão no jantar dos amigos geólogos. Até Stª Apolónia o vento frio fez-se sentir, tive a sensação que não aquecia. Continuava bem, ninguém passava, pudera parti no fim. Quando entrámos no Terreiro do Paço outras memórias, tantas que não dá para contar. Já na rua da Prata aí sim, lembrei-me muito bem do muro da Almirante Reis que algumas vezes foi escalado para terminar a meia no Inatel, até tremi, felizmente era só até ao Rossio. Já no Cais do Sodré, incontornável, o Hennessys Irish Pub levou-me ao Rodrigo, tão longe que já está esse tempo, amigo! Tanta estória. Entretanto os quilómetros iam passando. Lá pelos 15 um atleta passou, que estranho, onde teria andado a criatura? Provavelmente ainda com mais cagaço que eu. Passado pouco tempo abri o fecho da Karrimor, finalmente tinha aquecido. A Karrimor é um saber de há muitos anos, mais de 20. Tudo começou com uma mochila Karrimor que falava. Muita conversa por ter esta mochila aos ombros, a qualidade saltava à vista e provocava conversas. Comprei-a numa loja da especialidade numa altura que o setor não estava monopolizado por duas marcas, podíamos escolher. Mais tarde em Inglaterra deliciei-me com a Karrimor para tudo, designadamente para correr. Hoje a magnífica Karrimor é acessível em Portugal na Sports Directs  a preços muito bons. As grandes retas possibilitam ver os atletas lá ao fundo, sentia-me tão bem que ainda me passou pela cabeça tentar aproximar-me: “chega de estupidez, esgotaste todos os pontos a semana passada”, pensei, felizmente, no instante seguinte. Cada vez mais cheirava à meta e isso chegava-me, quando cheguei o Júlio estava mesmo ali, com menos 18 min que a semana passada, Évora estava limpa para os dois eborenses.

Como nos filmes o final feliz tem sempre mais alguma coisa, para além do fim. Recebi um convite para correr 6ª Corrida da Rota Fonte da Pipa, em Torres Vedras. Também aqui corri a primeira, de muito boa memória. Nunca numa corrida bebi vinho num abastecimento, foi aqui em Torres. Quem sabe se em fevereiro lá volto, recomendo vivamente (www.rotafontedapipa.com). Mas cereja ainda estava para se anunciar. O regresso à Parede: o conveniente Smart sem o trabalho das mudanças, a Marginal vazia, o alto patrocínio da Antena 3, um Sol brutal e um lago estupendo fizeram desta viagem um momento sublime.

 

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Adaptado de Esquire, de Matthew Buchanan