Este é o breve diário possível de uma experiência única com um vulcão de emoções.
O álbum de fotografias, no fim, completa a escrita.
dia 21 de abril
No dia 0 na Moita tudo respira cascos.
Na falta do animal a alternativa só podia uma, alguns cavalos em duas rodas, vou numa Honda NX 450, a Diana.
A MOTODIANA fez o resto. A maior riqueza deste país é a alma das coisas, também a das empresas. Apesar da marca global HONDA, a empresa alentejana tem a sua alma e por isso é fácil compreender que a diferença entre cavalos e motos é nenhuma. Aqui o que conta é viver uma tradição e ajudar a fazer uma terra melhor para todos. A égua Diana, depois dos primeiros quilômetros diz, desde logo, que é a escolha acertada. Por Pegões o Alentejo já lá vai, tudo ou quase tudo muda mas o essencial é igual. Estamos na Lezíria e quando as placas anunciam, Poceirão, Pinhal Novo, Moita, aqui sim não há dúvida. O ar na Moita é daqueles que nos diz que vai acontecer qualquer coisa grande.
Já no local da concentração o difícil é escrever tantos sons, cheiros, conversas, imagens. Tanta alma, tanto passado e por isso tanto futuro. O melhor mesmo é respirar fundo e ir viver o momento.
dia 22 de abril
Depois de noite pagã, na Igreja Paroquial da Moita acontece o primeiro momento religioso, cavalos e cavaleiros prostram-se perante a Senhora da Boa Viagem.
Logo aqui dá para compreender a dimensão cultural, religiosa e cénica do que se vai seguir até Viana no dia 25. Há gente e cavalos de todo o lado e por todo lado. Muitos a rigor evidenciam toda a arte e estilo associados. Faltam estrangeiros, é tempo de internacionalizar. Se franceses e espanhóis descobrem a Romaria é provável que venham, como se deseja e é necessário.
A Moita é atravessada com as ruas cheias de gente. As crianças e educadoras estão na rua e percebe-se que tudo isto é natural. A Organização denota experiência e profissionalismo, conciliar mais de 200 cavalos e carros de apoio com a vida normal da vila não é fácil, tudo corre bem. A quem está de fora até parece que é o quotidiano.
Porque a água é essencial também para os bichos à entrada do Pinhal Novo estão os primeiros bebedouros.
Passados mais de 10 quilômetros de asfalto entra-se, finalmente, na terra, o pó não engana e o menor stress da organização também não.
Sempre com a imagem da Senhora na frente e vai recebendo flores dos populares, mais de uma dezena de quilômetros depois chegamos à herdade do Rio Frio onde acontece o primeiro almoço. O circo é enorme. Muita desta gente não dispensa um almoço que mereça o nome.
Este mundo dos cavalos tem tudo para dar certo. Muito para além do lazer há uma infinidade de atividades profissionais que podem gerar riqueza. Percebe-se que alguém vai ter que pensar a estratégia para a evidente oportunidade. Até ao Poceirão, onde se pernoita, o piso arenoso levanta muito pó, o sol faz lembrar o Alentejo e as vinhas ficam a condizer. Ao som dos geradores, música e relinchar dos cavalos a noite promete.
dia 23 de abril
No Poceirão (Palmela) o dia começa na igreja local, na presença da Nossa Senhora da Boa Viagem, onde mais uma vez animais e cavaleiros são abençoados. A jornada serão cerca de 40 quilômetros repartidos pelos dois períodos do dia.
À boa moda portuguesa a tarde é sempre mais “complicada”. Não é só a Irmandade dos Copos que faz jus ao nome, no geral todos os participantes acompanham o almoço com muito vinho e cerveja o que se traduz em excessiva alegria nem sempre devota. Ao longo do percurso vai-se sempre convivendo e bebendo.
As vistas do campo são magníficas, pinhal, sobro, e, sobretudo um imenso mar de vinha sempre com a Arrábida e Palmela como cenário de fundo.
Cada quilômetro, com piso arenoso e muito pó anuncia mais Alentejo. Num abril que mais parece verão ao longo do percurso os pontos de bebida para todos, animais e pessoas, são muitos. A coluna alonga – se e a motivação religiosa e a existência de um andor são esquecidos. Na Landeira, como que a contrariar, o povo está na rua e a Senhora é venerada como que a recordar – nos que estamos numa romaria.
Quem parece não esquecer isso é a Lérri, uma ainda bonita égua de 24 anos que vem de Alcobaça. Percebe-se que não vai ser fácil mas o objetivo do cavaleiro Nelson é chegar a Viana e para que isso aconteça só falta mesmo levar o bicho ao colo. Por grandes troços o Nelson caminha ao lado da Lérri para a poupar. Uma lição de amizade e carinho do homem para com os animais. A enorme caravana está sempre a aumentar porque a cada hora chegam e integram-se mais cavaleiros. Aqui, onde nada falta, médico, veterinário e ferrador a caravana segue com música e muita alegria até Casebres onde hoje se pernoita antes de entramos francamente no Alentejo. Em Casebres o carinho pela Santa aumenta francamente e os populares passam a chamar-lhe Santinha.
dia 24 de abril
Antes do dia de hoje merece voltar a ontem. A meio da tarde um cavalo solto veio animar os romeiros. Por sorte estava por perto e como desconhecedor confesso do tema tive, ao vivo, a dança entre cavalo e homem durante mais de uma hora até que este, talvez por cansaço, se deixou apanhar. Mas a maior revelação foi tomar consciência do perigo que constitui para a Romaria um cavalo solto, sobretudo quando há éguas “saídas” por perto como era o caso. Ainda ontem na chegada a Casebres, percebe – se o Alentejo, foi apoteótica, muita gente na rua venerou com autenticidade a passagem da Santa. Algumas destas pessoas vieram de fora para terem o privilégio de ver a imagem no carro – andor.
A saída hoje foi bem cedo, havia cerca de 60 quilômetros para fazer antes de chegar às Alcáçovas. Já ninguém duvida, estamos mesmo no Alentejo. A paisagem é agora bem mais bonita e com menos humanidade. Quanto valem estas pinturas, agora verdes, daqui a pouco amarelas, castanhas e por aí fora? Um valor quase infinito. Brutal, arrebatador. Se em cima disto pusermos cavalos, charretes e cavaleiros não conseguimos escrever. Uma experiência real única à espera de uma visão estratégica que se transforme em riqueza para quem aqui vive. É absurdo que esta canada real não seja já hoje uma mais valia sem preço.
A paragem para almoço é em S. Cristóvão, já estamos em Montemor-o-Novo antes a Santa passa pela igreja local onde os pupilares esperam. A Dra Hortência (presidente da C Municipal de Montemor – o – Novo) tem noção do que tem em casa?
O almoço, como sempre, é um importante momento do dia. Animais e pessoas descansam e recuperam forças. Olhando para alguns animais compreende – se que esta paragem a meio da jornada é muito importante.
De tarde já cheira a Alcáçovas, mesmo ali ao lado de Viana mas é Alcáçovas.
Cavalos e cavaleiros antecipam o dia da chegada e a coluna aumenta consideravelmente em número. Por detrás da Santa há nomes como o Joaquim Filipe, o rosto e alma da C Municipal de Viana do Alentejo, que faz isto desde sempre, com a Isa por perto, e o José Alberto que conduz o Carro Andor. As histórias diárias são imensas e vão enriquecendo a Romaria.
As Santas ( Boa Viagem e Aires ) sabem.
dia 25 de abril
A noite de 24 nas Alcáçovas foi de arromba e para muitos pegou – se com o dia. O cansaço é evidente em muitos rostos, diria que nos cavalos também. O tempo tem ajudado, sem chuva e a temperatura ideal, se assim não fosse seria bem pior
A agora Santinha está prestes a encontrar a sua “congênere”, Senhora D’ Aires. Daires é um nome feminino comum em Viana onde as ruas estão vaidosamente engalanadas para receber a Romaria.
Mas antes nas Alcáçovas prepara-se mais um dia que não é mais um, é o da chegada; cavalos e cavaleiros estão mais a rigor. Não sabemos quantos mas não é difícil perceber há muito mais cavaleiros. Estes bonitos campos até S. Brás e depois até Viana ficam cheios de cavalos e charretes.
Em S. Brás do Regedor o enorme circo está montado para o último almoço. Os poucos quilômetros que faltam para o fim são feitos com emoção, cada vez com mais emoção, afinal estamos numa peregrinação e muitos entram em Viana com as lágrimas no rosto. Um mar de gente venera a Santinha, no Castelo o largo é mínimo para tanta gente e acontece um dos momentos altos, antes da chegada ao Santuário.
Por esta altura não há palavras, tão pouco imagens que consigam mostrar a verdadeira dimensão de tudo isto. Um dia destes Portugal e o mundo vão saber.
dia 25/26 de Abril
Em Viana as Santinhas encontram-se com muita apoteose.
O último troço, de S. Brás a Viana, mostra uma quantidade de cavalos e charretes nunca antes vista. Quando entramos em Viana o número de pessoas na rua é tão impressionante como tudo o resto. A Romaria atravessa a vila numa constante de alegria e emoção até ao Castelo/Igreja Matriz onde, comparativamente, há uma singela cerimónia religiosa.
Viana e a Romaria fundem-se, muitas varandas, janelas e portas estão engalanadas e os vianenses estão também em festa.
Seguindo o propósito final ruma -se ao Santuário onde cavalos e romeiros procuram a sua logística para o finalmente. Muitas famílias reencontram-se e o imenso terreiro parece pequeno.
Mais tarde na vila há a procissão noturna e no Santuário a festa continua não se sabe até quando. Como que a fazer jus às águas mil de abril choveu copiosamente mas a tenda gigante acolheu toda alegria convivial que os vianenses e romeiros tão bem praticam. Lá fora ainda houve lugar a um espetáculo equestre para brindar os cavaleiros e deliciar os restantes.
Até porque é domingo a festa como que termina com a missa campal no Santuário que foi antecedida da procissão que saiu da Igreja Matriz. Este é o momento perfeito onde se juntam romeiros e peregrinos que, entretanto, foram chegando à Sra D’ Aires, afinal estamos num Santuário de Fé.
Por esta hora o imenso circo de toda logística de cavalos e cavaleiros está praticamente desmontada, há que regressar a casa, algumas bem longe.
Até para o ano Romaria.
Álbum de fotografias (de C Cupeto):
Artigo no jornal O Mirante:
Muito bom. Texto, fotografias, festa.
Abraço
Gostei muito do que escreveu. Atentei, também, melhor no texto indicativo do blogue (em fundo amarelo), que já conhecia. É um bom achado o jogo com otros/outros, «distinção» que se fosse explicitada doutra maneira perdia a fundura que tem. Perdia a fundura e ganhava distância.
Parabéns
JL
P. S. – Estive em Viana (desejo antigo meu) em 2 de Abril p. p. e ao ter conhecimento desta romaria resolvi voltar. Se não houver impedimento, lá estarei em Setembro, nas festas da Senhora d’Aires. E ainda não tive a oportunidade de ver toda a igreja e fotografá-la.
Uma excelente narrativa de uma experiência única.
Obrigada pela partilha.
João
Ao ler as tuas palavras sinto sempre uma tranquilidade enorme e uma vontade crescente aumentar e comungar cada vez mais com a natureza.
Obrigada Carlos